História e Cultura Jurídica Brasileira

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

A Essência das Coisas

Final da Alta Idade Média: implantação da formação jurídica. Compreender a sociedade medieval é importante para compreender a origem das sociedades modernas, especialmente a origem dos institutos jurídicos.

O conhecimento do contexto da Idade Média é fundamental na medida em que ele nos ajudará a entender os elementos que estão se transformando no rumo à modernidade. Esse foi o sentido de trabalhar com o panorama genérico: os campos político, econômico e imaginário: três dimensões que têm temporalidades bem distintas. A percepção dos ritmos do passado é diferente: como vimos ontem, a dimensão política é uma que se transforma mais rapidamente, enquanto a econômica demora mais: a passagem do sistema de produção feudal para o capitalismo leva séculos para se completar, enquanto o imaginário pode levar, facilmente, meio milênio para apresentar suas transformações.

Como se organiza a vida social no feudalismo? A individualidade quase que completamente já desapareceu. Lembrem-se que estamos no séc. XI. A noção de indivíduo já é completamente diferente do que se tinha na época do apogeu do Império Romano, 800 anos antes; lá, o cidadão era aquele que tinha liberdade, e recebia um valor especial. Identificamos valores, princípios e idéias que orientam a nossa vida social. Viram como a dimensão imaginária tem temporalidade muito mais lenta do que a econômica e a política?

A história é a oportunidade de mergulhar num universo completamente diferente, dentro da alteridade humana, nas possibilidades de apresentação do homem... e então compreender sua lógica. Isso nos dá acesso a um mundo que supostamente não existe mais. "A história é a arte de fazer falar os mortos", disse um professor do professor. Fazer os mortos falarem de si, de seus valores, princípios, maneira de organizar o mundo e até de como eles mesmos viam e pensavam o mundo, presente e anterior a eles.

O fato fundamental, o princípio organizador do pensamento medieval, aquele sem o qual não entenderemos nada que dele decorre, é explicado por um fim último: Deus. Ele explica todo o mundo humano, todo o mundo físico. Podemos dizer que há uma ordem universal. Essa ordem não é construída por um homem; ela é pretérita, previamente estabelecida, antes mesmo de o homem sequer imaginar sua existência. Essa é a ordem universal na qual se inscrevem todas as criações, e foram por Ele organizadas. Esse é o pensamento fundamental.

Portanto, o que se pretende dizer? Que o mundo humano (o mundo físico) tem uma ratio, uma razão de ser, uma finalidade, um último sentido, uma última explicação, qual seja, Deus. Mas como isso se construiu em nossa tradição ocidental? Temos dois elementos básicos para entender o sentido. São eles a Bíblia, em Gênesis, e Aristóteles. Mas Aristóteles não é anterior ao Cristianismo, logo não conhecia as escrituras, os ensinamentos de Jesus nem a palavra de Deus? Não estamos, assim, misturando as coisas? Sim e não.

O individualismo é um dos objetos de estudo da antropologia que busca explica a idéia de indivíduo no pensamento ocidental. A idéia de indivíduo, entretanto, nasce no Oriente, de um pensamento fundamentalmente religioso. As religiões orientais são holísticas, que visam compreender o todo, e não o indivíduo (a parte). Mas, nessas sociedades holísticas, como ocorre o indivíduo? Como ele surge? Não existe o indivíduo? Veja bem: toda sociedade é holista e individualista ao mesmo tempo. No entanto, algumas são hegemonicamente uma ou outra. Nas holistas, o indivíduo se apresenta como? Na forma de indivíduo fora do mundo. O indivíduo só é possível quando ele recusa o mundo, já que ele é corrupto, decadente, perverso e, como o indivíduo oriental não concorda com nada disso, ele decide que deve se retirar desse mundo para ser monge, santo, peregrino...

Mas como explicar a volta desse indivíduo para o mundo? Nesse aspecto, fala-se em Lutero. O protestantismo propõe que a graça seja revelada pelas obras do indivíduo no mundo. Então temos todo uma tradição religiosa ocidental que propõe o indivíduo no mundo físico. Esse indivíduo está organizado de que forma? Como que se dá a Criação? Deus cria o mundo pela palavra, pelo verbo.

Na Filosofia grega, o mundo social é diferente do político. O homem se define essencialmente porque é político, ou seja, um cidadão da polis, ou simplesmente cidadão, conforme o conceito de cidadania para o grego. Para ser membro da cidade, seria necessário que o indivíduo possuísse uma qualidade única: a liberdade. Ser político, portanto, é necessário para realizar a sua essência, que é a de ser humano. Os não-políticos são apenas aqueles que têm algo a menos do que a humanidade: crianças, mulheres e escravos.

O que define a essência do homem na antiguidade é ser livre. A mulher não era livre, porque tinha de cuidar da família e estava subordinada ao marido. Era obrigada a cumprir seu papel na reprodução; precisava ser coagida a procriar.

Esse pensamento social é holista. O todo é maior que as partes. Note que, no parágrafo acima, está evidenciada a necessidade em que os gregos se achavam em perpetuar sua sociedade, e a mulher, não obstante sua inferioridade, estava colocada em último plano, mesmo sendo um indivíduo, de acordo com a nossa noção atual de indivíduo. O todo é a ordem natural; nela, as partes encontram um lugar. Esse lugar determinado, que Aristóteles chama de “apetite” é a necessidade, que motiva a manutenção de uma ação. Cada coisa que tenha seu lugar determinado na essência não pode mudar de lugar. A Natureza estava a serviço de quem? Posta por Deus, a serviço do homem. Existe uma ordem total, extremamente hierarquizada; um lugar inviolável, que está vinculada à sua essência.

Tanto a Filosofia de Aristóteles quanto o Cristianismo falam sobre um ordem natural. Ambos falam que as todas as coisas, em exceção, encontram um lugar determinado. Essas coisas, que encontram seu lugar pré-determinado, o fazem por sua essência, e sua natureza. É como se as coisas procurassem por esse lugar por sua própria inclinação. Esse lugar não pode ser mudado; tanto que a sociedade medieval era altamente hierarquizada, inviabilizando a mobilidade social. Parece que estamos falando do mundo ocidental no início da Era Cristã, mas na verdade estamos falando também de algo bem mais palpável para nós: a sociedade brasileira! Qual o ditado que tanto se parece com todo esse pensamento? “Cada macaco no seu galho”. Cada uma das partes que compõem a sociedade tem o seu lugar. E os macacos não têm legitimidade para mudar de lugar! Esse é um pensamento medieval escolástico que foi dificilmente superado; a superação consagrada só veio mesmo com a Revolução Francesa no final do séc. XVIII. Essa idéia resistiu até mesmo ao iluminismo em Portugal. Nossa cultura brasileira está fortemente atravessada por esses princípios.

Estamos chegando no que vamos falar lá no final desta disciplina: o pensamento moderno, a organização de nossos sistemas de valores, que por sua vez organizam o Direito.

"Eu, homem, encontro um lugar no mundo, que é próprio meu". É a própria natureza do homem. Ela muda sobretudo sob a influência do Cristianismo. Para muitos, liberdade é igual a "não-constrangimento". Para o cristão, liberdade é ser livre do pecado em seu coração. Para os gregos, a liberdade era no mundo; para os cristãos, no coração. Inclusive até submete-se à tirania porque a busca última é a salvação. O próprio Cristo dizia isso. “Meu reino não é aqui, mas nos céus.” E não se importava muito com as coisas do mundo. A essência do homem, aquilo que define seu lugar no mundo é organizar uma sociedade que tenha em vista o bem comum e o equilíbrio natural. Este é o lugar do homem no mundo. A que homem repousa essa responsabilidade? O rei, que é o preposto de Deus na Terra, incumbido de organizar o mundo a partir de uma ordem natural em conformidade com as ordens de Deus. O rei é o tronco da estrutura política medieval; ele próprio é o Estado. Essa concepção durou até a modernidade, como bem dizia Luis XIV: L’État c’est moi. Ele sabia, ou pelo menos dizia saber, o que era o bem comum. "Nada mais, nada menos do que as coisas em seu lugar e equilibradas" resume o que era a justiça e o bem comum para os medievais.

E onde entra o Direito nessa arquitetura de pensamento? Ele também é submetido a essa ordem natural. Mas como ele é explicado, em meio a todo esse emaranhado? O Direito refere-se à justiça. O que é justo e o que é injusto? Justo é aquilo que está em correspondência com a ordem natural das coisas. Quem é o homem responsável por ordenar o mundo a partir do verbo divino? O rei. Quem é responsável pela justiça? O rei. Não é por outro motivo que, no medievo, o pensamento da sociedade é bem diferente do da modernidade.

O rei é o árbitro. Isso é bastante complicado porque não há, no medievo, uma estrutura jurídica determinada. É uma lei comum, e o rei arbitra a partir dessa tradição. Portanto, justiça é cada coisa em seu lugar, ou melhor, “cada macaco em seu galho”. E quem sabe onde as coisas (macacos) devem estar? O rei. Aliás, é um atributo que o legitima como rei. Só alguém real é capaz de fazer justiça. Então, o Direito medieval pode ser definido na verdade, como a ciência do justo e do injusto fundado no conhecimento das coisas divinas e humanas. O conhecimento humano é produzido a partir dessa ordem natural das coisas.

Cada coisa tem, portanto, sua essência. Qual a essência da mulher casada? Ser honesta! Ela tem um papel no mundo, ser mãe de família, dona de um lar. Para ela realizar isso, ela não pode estar afastada de sua essência. E qual é a essência de um homem nobre? A honra. Ou seria o dinheiro, a sobrevivência, o prazer, as banalidades? Se ele possui uma ou mais dessas quatro características em evidência, então ele está afastado da essência de um nobre; isso o fará se parecer com um plebeu, que pode ter, por sua vez, a sobrevivência como essência. Estar afastado da essência significa que há algo fora do lugar na ordem divina. Este é um pensamento conservador. Veja como as hierarquias são fortemente fundadas. É difícil deixá-las; há um paradigma muito forte em torno disso. Dessa correspondência entre essência, que é a realidade profunda de cada coisa e sua aparência, decorrem os títulos, os trajes, os tratamentos...

Portanto toda organização social depende da natureza das coisas, que são predeterminadas de modo que inventar algo é condenável pois escapa à natureza das coisas. Inventar é prerrogativa da vontade, e a vontade não é um elemento válido nem legítimo nessa arquitetura mental. Por quê? Quando falamos em Direito, falamos de leis. Leis naturais, preestabelecidas por Deus. Logo não é possível inventar leis. Não é possível governar a partir da vontade, nem mesmo um rei. Ele mesmo precisa governar a partir da ordem natural das coisas. Isso implica que culturas, nações e povos diferentes precisam ser governados de maneiras diferentes, referenciados às especificidades do lugar onde vivem.

Isso é básico. Neste momento, o Direito natural é uma espécie de Constituição.

Esquema:

Pensamento social e político medieval

Uma ordem universal orientando os homens e as coisas para o Criador -> um mundo humano e físico explicado por esta ratio;

Gênesis: narrativa da Criação inspirando o pensamento social medieval e moderno -> fundamentando as hierarquias e ordenando as coisas -> Deus ordenou a Nat e o rei em lugar de Deus na Terra, ordena a sociedade baseado nessa inspiração;

Aristóteles: as coisas e seu lugar no mundo determinando por sua natureza: as coisas têm “apetites” internos que as orientam espontaneamente, para seu lugar natural no mundo;

O homem é essencialmente político, naturalmente gregário, pronto para desempenhar sua legítima função no todo. Ele organiza uma sociedade tendo em vista o bem comum e o equilíbrio natural.

O Direito tem também como fundamento a ordem divina da Criação: a justiça se identifica com a Natureza e esta com Deus.

O Direito é: “a ciência do justo e do injusto, fundado no conhecimento das coisas divinas e humanas”.

Justo: viver honestamente, que é um preceito básico do Direito -> aderir à ordem natural das coisas e do mundo.

Mundo: a natureza profunda das coisas (a essência) deveria corresponder às suas aparências; dessas aparências resultam dispositivos que determinam as interações sociais: títulos, tratamento, trajes, etc.

A organização da sociedade depende, portanto, da natureza das coisas. Dessa organização resultam dispositivos que determinam as hierarquias sociais, e é condenável inventar uma ordem social fundada na pura vontade.

Há leis fundamentais da sociedade, tal qual a fisiologia humana, que independem da vontade;

Formas diferentes de organização das nações e culturas diferentes: baseadas nas suas particularidades naturais -> Direito natural tendo função constitucional;

Deus, causa primeira, geraria as causas do mundo através de seus anjos, céus, estrelas, elementos naturais (as causas segundas) -> o governo dos homens deve imitar o governo de Deus.