Filosofia

terça-feira, 2 de junho de 2009

Idealismo de Immanuel Kant



Na aula passada vimos o empirismo. Hoje vamos ver o idealismo de Kant. Ele não é o único modelo de idealismo, mas é o mais debatido e combatido. Como dizem, ele é um divisor de águas: “antes e depois de Kant”.

Como Kant desenvolve seu pensamento? Lembrem daquela estratégia de crítica, que serve para muita coisa: sempre apresentaremos crítica a partir da tese dos autores, não a partir dos postulados. Veja como Aristóteles falou de Platão, ou os empiristas de Aristóteles.

Então olhem: estamos no realismo. O que acontece é que Kant verifica que, para passar para sua tese, ele observa o realismo e o empirismo. Ele vê os pontos fortes e fracos de cada um. Quais são os pontos fortes do realismo? O centro dele é estabelecer critérios racionais, parâmetros. Exemplo: podemos denominar esses critérios de pontos arquimedianos. Quando ele cria a teoria da alavanca, ele disse: “dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e moverei o mundo!” Isso é chamado de ponto arquimediano. É um ponto teórico que seria um critério tão forte, que determinaria a condição de qualquer realidade. Inclusive a esfera moral e política. Neste caso, Kant entende que o ponto forte do realismo é ter os pontos arquimedianos. Ou seja, eles têm um critério logicamente transcendental, que significa que é válido para o sistema mas não depende dele. A vantagem é que eles dão condições para nós decidirmos. São critérios de decidibilidade. Como é um critério autônomo ao sistema, no final das contas, ele é a base para decidirmos. Por isso é critério de decidibilidade. Ou seja, podemos decidir o que é realidade, saber se ela existe ou não, se ela é autônoma ou não, e se ela tem essa configuração ou não (que são exatamente as três perguntas que se deve fazer preliminarmente sobre a realidade). Dado que admito que tenho um ponto de apoio para dizer que algo pelo menos existe, tenho como saber se meu conhecimento é válido ou não. Mas mais que isso. Também tenho condições de saber se as condutas morais, políticas e jurídicas são validas ou não.

Vamos começar pelo inverso: para o realista, como eu sei que determinada ação, que determinado indivíduo ou conduta ou ação é moralmente correta ou não? Exatamente para isso é necessário um critério que não seja definido pelo sistema. Temos um critério que é válido. Um deles é o princípio de isonomia, que é jurídico.  A pergunta é: o princípio de isonomia é imanente ou transcendente? Autônomo ou heterônomo com relação ao nosso Direito? Vale para qualquer Direito? Ou só imanentemente em nosso Direito brasileiro ou para o Direito ocidental? É uma regra universal? Se fosse, o que aconteceria? Essa força universal teria que vir de onde? Da natureza humana. Nisso o empirista vai logo martelar. A questão interesse é: se tivesse validade universal, ele teria que ter validade racional. Porque ou se admite pela força da razão, ou da violência. Em outras palavras, o realista dirá: “do modo que compreendemos temos um problema. Se é assim, poderemos admitir que, por exemplo, existem formas de Estado que não precisam passar pelo processo da legalidade. O Estado absoluto, por exemplo.” Aí que está o ponto interessante. O princípio de legalidade é imanentemente jurídico, e está nas condições jurídicas.

O princípio de igualdade pode ser calcado num princípio formal universal, como o de equidade de Aristóteles. Independente do modelo de isonomia, não é assim que o povo é tratado? A questão material é diferente; a formal que não. O próprio Aristóteles, como vimos, não entendia os escravos como iguais, nem as mulheres nem crianças. Só os homens livres. Você não pode eleger alguém que não pode ser eleito. Como é formal, o princípio é flexível no conteúdo. Ele era válido no colonialismo porque o negro não pertencia ao Direito das gentes. Mas o princípio de isonomia, por ser uma instância do princípio de equidade no Direito, também ganha a formalidade do princípio de Aristóteles.

A vantagem do realismo segundo Kant é que ele dá um critério, que é o da razão. Ela constitui os critérios que ela mesma tem que seguir. Os três grandes princípios da lógica aristotélica, os grandes princípios da política, e assim por diante. Em outras palavras, temos grandes princípios formais que são da razão. Mas o princípio da isonomia vale fora da área jurídica? O princípio da equidade vale para a esfera moral, jurídica e política. O princípio de contradição vale para a Física inclusive. Kant diz então que os realistas têm a vantagem de dar um ponto arquimediano. Com ele, podemos decidir o que é a justiça, ou se a pessoa está agindo justamente ou não. Se sim, ela preserva o princípio da eqüidade, e ponto final.

Então podemos determinar se uma sociedade está agindo ou não de acordo com o princípio. Então temos a virtude da justiça, que é virtude racional humana, que é o parâmetro. Dworkin (1931 – vivo): o jusfilósofo americano não questiona a questão de vida. Ele estabelece a condição na realidade empírica na qual existimos, mas ele parte de um parâmetro que deve ser válido para qualquer sociedade, ou qualquer homem. De um valor intrínseco do ser humano, que não pode ser questionado. A partir dessa noção, posso comparar o que a sociedade e os indivíduos estão fazendo. Temos critérios para decidir. Claro que, do jeito que Dworkin é aristotélico, tem-se que analisar as questões contextuais. Temos um parâmetro para saber o que é conhecimento e o que não é, ciência ou não, moralidade ou não, realidade ou não. É exatamente essa a idéia. Parâmetro e paradigma não são a mesma coisa de dogma. Esse critério tem que ser totalmente racional e autônomo.

Se o parâmetro pertence ao sistema, ele varia com ele. Mas o parâmetro não pode variar.

Mas qual a desvantagem dos realistas? É que eles tomam esses critérios como postulados, dogmas. Olhem o Trilema de Münchhausen aí. Kant concorda com os empiristas. Ele cita Hume, dizendo que ele despertou do sono dogmático. Isso porque, no final das contas, os realistas, apesar de estarem corretos em admitir que há critérios totalmente racionais e autônomos, caem no erro de tomá-los como dogmas da razão. Na verdade, apesar de eles acharem que estão provando dedutivamente a necessidade da essência, ou a necessidade de Deus, ainda assim eles não provam, eles assumem como postulado. Vejam:

Para mostrar, vamos começar com um modelo de prova de Deus, que é mais simples, apesar de sofisticado na lógica. É de Santo Anselmo (1033 – 1109). Ele criou a prova da perfeição ou prova ontológica. Todos os grandes realistas partem sempre de afirmações que, em geral, por bom senso não negaríamos. Vamos transformar em perguntas: podemos pensar a perfeição? Claro, porque senão não poderíamos nem enunciá-la. Mesmo que não tenhamos clareza. Mas podemos pensá-la. Para Aristóteles, a perfeição é comparativa, para Platão é absoluta. Tudo bem. Essa é a primeira premissa do argumento: o homem pode pensar a perfeição. Segunda pergunta: nosso pensamento é perfeito? Não. Se fosse, teríamos conhecimento da totalidade. Mas nosso conhecimento é discreto, dado em partes, e cresce cumulativamente. Ele pode ser indefinido, mas não infinito. Tanto é que podemos conceber os números, mas não podemos conceber os números naturais em sua totalidade. Só Deus teria condições de fazê-lo na totalidade. Então, essa é a segunda premissa: o homem mesmo não é perfeito. Então, dado que podemos pensar a perfeição, que é imanente a nós, e podemos produzir o conhecimento dela, nós somos perfeitos? Não, mas podemos pensar na perfeição. Ou ela vem de nós, ou vem de fora de nós. Ou construímos a noção de perfeição ou ela vem de fora. Não podemos constituí-la, pois do imperfeito não pode vir o perfeito. Então, a perfeição não é imanente; ela é transcendente. Isso é a conclusão.

Se ela é transcendente, ela pode estar no mundo, e conhecemos a perfeição abstraindo do mundo. A pergunta é: ela pode vir por abstração do mundo. Mas o mundo é perfeito? A realidade externa a nós é perfeita? Se admitimos perfeição, admitimos que há a imutabilidade. E a realidade empírica tem mudanças? Tem, então o mundo não é perfeito. Logo, qual a conclusão? A perfeição não pode estar no mundo, e tem que ser transcendente a ele. Logo, se ela está fora da realidade, ela tem que ser metafísica. E aí vem a questão: a perfeição deve existir. Se ela existe, ela é Deus. Esse é o famoso argumento da perfeição ontológica.

Mas por quê? Isso é uma derivação. Ele explica que como somos criados limitados; não podemos ser perfeitos. Por isso indagamos sobre Deus, já que queremos ter perfeição. Daí vem a busca do conhecimento de Deus. O homem tem a ansiedade de chegar a Deus, à perfeição. Essa é uma forma de reeditar o livre-arbítrio de Santo Agostinho, a tendência a Deus: o homem é incompleto sem Deus.

Mas onde queríamos saber? Um monge francês contemporâneo de Anselmo, Gaunilão, que era empirista (um dos primeiros empiristas do pensamento moderno), lançou essa crítica a Santo Anselmo: temos a esfera da lógica, ou da linguagem. Anselmo fez a prova lógica da existência de Deus. O que acontece é que ele fez uma prova lógica da perfeição e, logo, entendeu que essa perfeição tem que ser Deus. São Tomás de Aquino faz semelhantemente. A diferença é que São Tomás de Aquino usava o argumento do ser. Depois de provar a existência lógica de Deus, admitindo que não discutamos que a existência de Deus é necessária por prova lógica, Anselmo, seguindo Gaudilho, ele passou da existência lógica para a existência na realidade. Quer dizer que, dado que provei a existência necessária de Deus, segue que Deus tem que existir. A pergunta interessante é: ele tem mesmo que existir na realidade? Não. Passamos da lógica para a metafísica. Essa passagem que será problemática.

Podemos pensar uma ilha perfeita? Sim. Mas segue que ela existe? Esse é o problema de todo esse tipo de prova. É só estabelecermos os parâmetros de perfeição. Eu posso simplesmente, a partir dos parâmetros de perfeição, dizer que há uma ilha perfeita. Mas isso significa que ela existe? Óbvio que não necessariamente. O mesmo vale sobre essa passagem de Deus. Não segue que ele terá necessária realidade. Esse é um salto lógico. Ockham veio dizer o mesmo dois séculos depois.

Vejam a diferença para uma teoria científica: posso criar uma teoria para explicar a existência do Universo? Sim. Mas tem uma questão: posso, no final das contas, passar da teoria para a realidade? Como o problema do isomorfismo: a linguagem espelha o que a realidade é? O mesmo para a realidade em relação à teoria. Eu crio a teoria e crio os instrumentos para testá-la no campo da realidade. Mas como poderíamos saber que tal planeta fora do sistema solar tem ou não água? É exatamente o mesmo que pretender saber que Europa (lua de Júpiter) tinha água antes de mandar a Galileu para lá em 93. O problema é que os testes são feitos aqui. Eles simplesmente usaram gelo, em várias formas, e empregaram espectroscópios, verificando a luz que é refratada pelo gelo, que tem determinada freqüência ao emergir: água na forma de gelo. Então, apontaram os radiotelescópios para Europa e captaram a mesma freqüência.

Aí que está: de conseguirmos a prova científica e a prova filosófica é outra coisa: provei que existe Deus, mas não provei que ele está na realidade. É o problema de São Tomás de Aquino: ele prova o ato puro de ser, dizendo que a Bíblia diz a mesma coisa, mas quem disse que a Bíblia disse isso? Tomás de Aquino interpretou. Mas sobre qual parâmetro? Sobre o parâmetro de interpretação ortodoxa hermenêutica da Bíblia. Neste caso então, São Tomás de Aquino usou o parâmetro que ele julgou ser o verdadeiro. Mas ele provou que o parâmetro é verdadeiro? Não, ele aceitou dogmaticamente. Santo Anselmo aceitou dogmaticamente que Deus existe então a perfeição tem que ser Ele.

Aristóteles: eu tenho o mundo. Ou ele é sua própria causa de existência, ou algo além é a causa da existência. A história é sempre uma relação de causa e efeito. Dado que o mundo não é causa sui (de si mesmo), então essa causa tem que estar para além do mundo. Mas se usarmos a questão da redução infinita, teremos problema: essa causa seria intermediária, e assim por diante. E Aristóteles diz: sem primeira causa, não teremos causa nenhuma. Mas ninguém nega que o mundo existe. Ao menos alguns objetos existem. Se esse algo existe, e chamo de mundo, então no final das contas ele existe. Se existe, ele não pode ser sua própria causa, então tem que ter uma causa fora dele. Neste caso, se existir a primeira causa, não podemos ter a explicação de por que o mundo existe. A primeira causa é chamada por Aristóteles de essência, que é a causa da realidade.

Nisso o cético vai dizer: “quem te disse que a essência é a causa? Só porque você disse? Desde quando temos que ter uma, e desde quando ela precisa ser necessária?” Nós sempre pensamos na relação de causa e efeito. Tudo que existe é feito, e tudo que é feito é criado. Temos a tendência de achar que tudo tem uma causa. Suponhamos que todo dia chegamos aqui na sala de aula e vejamos a lixeira naquele lugar. Vamos pensar que o lixo tem uma causa para estar lá. Em outras palavras, na verdade, temos que estabelecer uma causa. Mas isso, e aí que está o problema, de não podermos passar de uma prova lógica para uma prova metafísica. Nem estabelecer que determinada causa é necessária, nem se é a causa em si.

Vamos ver o caso do avião que deve ter caído. O mundo é o Efeito. Para todo efeito, deve existir uma causa. O realista trabalha com a noção de causa necessária para um efeito, numa linha reta. E sempre haverá outra causa, e assim por diante. A causa primeira tem que ser achada. Pode ser as idéias de Platão, Deus, a essência de Aristóteles. Tomemos o avião da Air France do vôo 447: disseram que ele pode ter sofrido uma pane elétrica. Mas isso, num avião de alta tecnologia, pode ser suficiente para derrubá-lo? Sem condições. Uma pane elétrica por si não é o bastante. Os aviões de hoje em dia tem um sistema para driblar a pane elétrica. Se no passado os aviões já se mantinham no ar sozinhos, os aviões de hoje podem até pousar sozinhos. Mas pode ter sido um raio. Ou não? Não, o avião é uma gaiola de Faraday. São necessários muitos defeitos para poder cair. Situações que colapsariam todo o mecanismo. O mais interessante é que podemos ter infinitas causas incidentalmente interagindo. Então não posso simplesmente dizer que esta é “a” causa. Só podemos falar em conjunto de causas prováveis. Nem problema de pressurização derruba um avião. E mesmo o engenheiro não pode falar ainda. Então, as causas não são isoladas. Posso ter infinitas causas possíveis, com conjunto das mais prováveis, e ainda assim algumas podem nem ser.

Eleger uma causa não empírica dá problema: como não se pode ir para o infinito, aonde chegar? Os realistas partem para uma causa metafísica. Essa passagem que não é permitida. Provando a existência de características, por muitas que sejam, não é possível, ainda assim, que se prove a alma.

Então, o problema é exatamente esse: pode ser a essência de Aristóteles, modelo de São Tomás de Aquino, o problema é que no final sempre seremos, segundo os empiristas, obrigados a admitir uma condição dogmática, algo que não está provado. Daí a realidade empírica é por demais prolixa. Essa é outra desvantagem do realista. O realismo de Platão é ainda mais complicado, pela infinidade das idéias. Aristóteles reduziu para quatro. Mas ainda assim foram taxadas de desnecessárias.

Nisso voltamos à vantagem do empirismo segundo Kant: o que é real? O que é visto pelos sentidos, e o resto é criação teórica.

Veremos as desvantagens do empirismo na próxima aula. Ele gerará o egoísmo.


Conceito do dia: